Esta discussão em redor do casamento entre pessoas do mesmo sexo tem sido muito interessante. A mim agrada-me este tipo de situação em que a discussão de um tema, de uma causa fracturante como alguns gostam tanto de afirmar, não nos deixa em paz durante uns tempos. No sentido em que enquanto o tema é debatido vão sendo levantadas questões íntimas, que nos confrontam com preconceitos que desconhecíamos {em nós e nos outros}, que nos fazem questionar ideias e posições tidas como certas {ou erradas}. E queremos, e procuramos, respostas. E depois há coisas que lemos e ouvimos e que nos fazem confusão, que nos fazem torcer o nariz.
Nada tenho contra o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Se o Governo de Sócrates o aprovar, tudo bem. Se Pacheco Pereira e os seus amiguinhos levaram em diante o infâme referendo, também. Levanto-me e vou votar {a favor, note-se}. Se do casamento decorrer a adopção {como, de resto, deve decorrer}, na boa. Adoptem. Se querem saber, até com o maior medo dos opositores – falo, claro está, da extinção a longo prazo da populaça {absurdo dos absurdos} – eu não tenho problemas. Extinga-se. Quem disse que temos de ficar por aqui eternamente?
Mas tenho questões, ai tenho, tenho. E estas prendem-se com duas situações, a saber, o casamento poligâmico e o casamento incestuoso. [Aliás, antes mesmo de entrar pelo assunto dentro, permitam-me a sugestão de que daqui em diante se substitua o termo "casamento incestuoso" por "casamento entre familiares". Porque se se entende {e eu passei a entender} que se deve falar de "casamento entre pessoas do mesmo sexo" e não de "casamento homossexual", então... Casamento entre familiares
it is.] Mais, também não consigo entender o argumento {que é, de resto, utilizado para rebater a comparação com estas duas outras formas de casamento} de que a homossexualidade é uma "orientação sexual" e não uma "opção sexual". Em suma, uma questão identitária. Como tal, diferente da poligamia e do incesto.
Eu vi o "Prós & Contras" de uma ponta à outra {pela primeira vez, note-se}, tenho andado pela blogosfeira, oiço e leio aqui e ali, acompanho por alto a discussão. E fui notando que havia ali algo de comum a eles todos {os apoiantes do casamento entre pessoas do mesmo sexo} no discurso, nos conceitos que abordavam, até no modo como os defendiam. Como se tivessem lido o mesmo manual antes de iniciarem os debates, como se estivessem todos afinados por uma mesma bitola. Havia ali uma concordância {para além do tema propriamente dito, claro está} que me soava estranha. Pois há uns dias atrás, o
MVA deu-me a perceber a origem de tal metrónomo ao mencionar e postar o parecer jurídico "Um símbolo como bem juridicamente protegido" de Pedro Múrias {descarregar
aqui}. Estava encontrado o cerne da coisa, desta estranheza. Era este o documento, a palavra. Saquei-o da
net e li-o. Como não tenho problemas com a questão de fundo, o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo e as suas consequências, absti-me de ler atentamente as questões legais, jurídicas, etc. da questão e centrei-me praticamente naquilo que dizia respeito às minhas dúvidas, isto é, aquilo que no parecer são denominadas por analogias inevitáveis. Note-se, desde já, a ausência de uma analogia inevitável, mas aqui "esquecida", que é a do casamento poligâmico. Mas atentemos às outras {e todas as citações são do citado parecer}.
1.ª analogia«A semelhança entre a «questão» do casamento civil e a «questão» do casamento entre pessoas do mesmo sexo sugere, é claro, uma outra analogia. Uma eventual supressão do casamento civil, hoje, quiçá num «regresso às origens» da figura, seria uma amputação gratuita de um direito fundamental. A negação do casamento entre pessoas do mesmo sexo é uma amputação idêntica. Entre o surgimento do casamento civil e o do casamento gay ou lésbico há, entretanto, a diferença histórica de mais de um século. O que foi político e, inclusive, revolucionário, é agora assente e constitucional. O casamento homossexual é apenas o último estádio do casamento civil.»Como se pode pretender, assim tão peremptoriamente, que este seja o último estádio do casamento civil? Parece-me extremamente abusivo. Além de redutor. Não há nada mais além?
2.ª analogia«Mais importante é a analogia entre a proibição do casamento entre pessoas do mesmo sexo e a proibição do casamento entre pessoas de raças diferentes. A homologia dos argumentos históricos e possíveis e das explicações aceitáveis chega aos pormenores mais ínfimos. Em ambos os casos, a proibição resulta, sociologicamente falando, de um preconceito estabelecido e de uma atitude de distinção opressiva de grupos de pessoas. O racismo, num caso, a homofobia, no outro.»
«Por seu lado, o racismo e a homofobia são em si mesmos homólogos absolutos. São sistemas de opressão com um passado e algum presente de violência extrema, estruturados, na sua forma prototípica, através da identificação indelével de grupos de pessoas consideradas piores e repugnantes.»Se o argumento anterior me parecia abusivo e redutor, este parece-me mesmo absurdo e causa-me estupor. Comparar sexo {sexo, relações e apetites sexuais; não é género} e raça/etnia vai além da minha compreensão. Estão mesmo a falar sério?
3.ª analogia«A analogia é invocada pelos opositores do casamento homossexual no sentido de que, tal como a proibição do incesto é constitucionalmente válida, também a proibição do casamento homossexual assim seria. Por outras palavras, se a proibição do casamento entre pessoas do mesmo sexo fosse inconstitucional, teríamos de concluir pelo absurdo de também a proibição do incesto o ser.»
«O incesto promove juízos negativos sobre actos, só mediatamente sobre as pessoas que os praticam, ao contrário do racismo e da homofobia. Simetricamente, mas mais importante, um afecto incestuoso não é uma condição identitária, ao contrário da raça e da orientação sexual. A orientação sexual, como a etnia, identifica cada pessoa como membro de um grupo socialmente distinto e permanece, tendencialmente, ao longo de toda a vida dessa pessoa. Faz parte daquilo a que cada um chama a sua natureza. A autocensura de um amor incestuoso corresponde ao juízo de que se comete um erro; a autocensura de um amor homossexual corresponderia ao juízo de que se é um erro.»Outra vez a raça e o sexo... E esta implicação com o termo orientação como sendo antípoda do termo opção. Orientação, orientação, orientação. A mim parece-me nitidamente uma opção. Mais levada a sério, mais levada levianamente, mas sempre opção. Eu conheço pessoas que viviam uma relação heterossexual e passaram a viver uma relação homossexual. Conheço pessoas que viviam uma relação homossexual e passaram a viver uma relação heterossexual. E quando falo em viver uma relação, falo em viver debaixo do mesmo tecto, partilhar a cama, as refeições e as contas ao fim do mês. Até os filhos. Nunca vi, ou soube, ou consigo imaginar sequer, casos semelhantes implicando a raça/etnia... Mas depois vem o parecer jurídico e reforça a ideia de... natureza!? Tipo "não tenho palavras, é mais forte do que eu...»? E o que será isso do grupo socialmente distinto? Terá um alimentação também ela distinta, tipo a comida
kosher dos judeus? Sinceramente, não entendo.
«O incesto é tema literário e académico, não é objecto de perseguições organizadas nem bandeira de movimentos reivindicativos.»Tema literário e académico? Não foi em tempo a homossexualidade entendida nestes termos? Não aprendemos nada? Os polígamos e familiares enamorados deste mundo não estão organizados em movimentos reivindicativos? Porque será...? Bom, é como diz o parecer: «Não se discute o casamento entre pessoas no mesmo sexo na Arábia Saudita, nem na Inglaterra vitoriana. Numa sociedade em que a identidade homossexual e as relações amorosas homossexuais forem vistas como a mais natural das coisas, tal como a identidade e as relações amorosas heterossexuais, o casamento para ambos os grupos será um produto esperável.» {substitua-se "homossexual" por "polígamo", p. ex.}
Volto a lembrar que uma quarta analogia, a do casamento poligâmico, foi deixada de lado pelo parecer. Continuo sem saber porquê. Bom, até percebo. É verdade que os movimentos LGBT não têm que andar a defender os interesses e as lutas de outros grupos e movimentos {inexistentes, latentes ou em vias de organização}. É verdade. Mas também seria desejável que não os segregassem de modo a poderem levar as suas causas avante. Não aceitar que a poligamia e o casamento entre familiares possam ter a ver com esta discussão é errado e pouco honesto.
De modo a finalizar a minha posição e as minhas dúvidas, eis novamente as palavras do parecer: «A importância do casamento é a ligação indissociável deste, na cultura que temos, aos factores emocionais decisivos referidos ao longo do parecer. A limitação do acesso ao casamento é a supressão de uma possibilidade de sucesso emocional. A proibição do casamento homossexual viola, pois, o direito ao livre desenvolvimento da personalidade e o art. 26.º, n.º 1, da Constituição». É por acreditar que o que interessa aqui é o tal sucesso emocional e o tal livre desenvolvimento da personalidade, e por acreditar que o amor toma as formas mais díspares, que não posso concordar com o "afastamento" do casamento entre familiares e do casamento poligâmico da discussão. São formas de relacionamento amoroso tão legítimas quanto as que estão agora em debate. Desde que – e friso sempre e com convicção estas duas condições inatacáveis – se verifique que as partes são {1} maiores de idade e que estão {2} de livre vontade na relação. Verificadas estas condições, o que poderá obstar ao casamento de duas {ou mais} pessoas, do mesmo ou de sexos diferentes?