1. A primeira intenção é a de não votar sequer. O Referendo enquanto mecanismo é uma fraude, um empecilho e uma inutilidade. O meu lado mais cáustico diz mesmo que não há nada pior que dar voz ao povo, à massa. Uma coisa é dar o voto, outra é dar voz, pedir a opinião. Brrr... arrepios pela espinha abaixo. É um chorrilho de disparates que não tem fim. Não votei há uns anos atrás por este motivo e passei por ter ido trabalhar para o bronze. O que me lixou um pouco, confesso.
2. O segundo momento, e na sequência do primeiro, é o de desejar que se tivesse organizado, em tempo útil, um Movimento pela Abstenção. Organizado, com fundos ou não, mas com um mote bem definido: "Achamos isto uma perda de tempo, uma falácia, e desejamos que esta questão volte para onde nunca devia ter saído: a Assembleia da República!". Um movimento que apelasse à não ida às urnas ou que reivindicasse, e isso é que era lindo!, o direito a uma caixinha no boletim de voto. O direito a uma cruz através da qual os cidadãos apelassem à responsabilização dos governantes. Os cidadãos votam, os governantes decidem. Referendar estados de espírito e questões de cons-ciência é um verdadeiro disparate. Tivesse este movimento nascido e o meu voto era canja. Mas não nasceu e não vou cair no erro de achar que caso ganhe o NÃO este cenário se tornará mais concreto e plausível. Porque não se tornará. Abster-me porque acredito nas razões acima descritas já não chega. Esse não-voto só serviria se tivesse uma base de apoio, um movimento a suportá-lo. Logo, a conclusão desta vez é: tenho de ir votar.
3. Votar em que direcção? Bom, é mais do que óbvio que tem de ser SIM. E, pronto, o meu voto vai para o SIM.
4. É pacífico, este voto? Não, não é. É verdade que nem sequer sabemos bem o que estamos a votar; sim, só depois de ganhar o SIM é que os ilustres senhores deputados vão pensar no assunto (como legalizar estabelecimentos, em que moldes, quantos por habitante, o que fazer aos médicos de serviço que se recusem a proceder ao trabalho, um sem fim de questões que hão-de vir aí). Caso ganhe o NÃO, bem, ficará tudo na mesma como ficou há uns anos atrás. Nem uma alminha do NÃO de então fez uma coisa que fosse para alterar a situação. Se há coisa que lhes agrada é deter o Monopólio do Perdão. Deixai-as abortar, senhores, que nós estaremos cá para as ouvir e aconselhar. Nessa não embarco e tudo farei para que também o Estado possa perdoar a quem deva ser perdoado. Portanto, voto SIM para acabar com o Monopólio do Perdão (os monopólios cheiram a mofo!). Também é verdade que a questão à volta das semanas é miserável. Mais semana menos semana, tudo é tempo, tudo é vida. O SIM pedincha umas semanitas e o NÃO marimba-se nos fetos que resultam de violações (esses podem ser abortados, dizem eles; isto só dá para rir...). Todos têm telhados de vidro nesta matéria. Ninguém tem coragem de afirmar que: ou é ou não é. Para mim, que acredito que são os filhos que escolhem os pais e não o contrário, que acredito que nascer não é forço-samente a melhor coisa que nos pode acontecer, acho que se um tipo vem cá para ser abortado por alguma razão será. Apenas posso desejar que perceba que razão é essa e que cresça um pouco mais. Convenhamos, um tipo ser abortado à primeira semana ou na última é precisamente a mesma coisa. Está vivo agora, está morto agora-mais-um-minuto. Lá porque tem coração, unhas dos pés e pilinha bem visível já conta mais do que quando tinha apenas um pulsar microscópico? O aborto devia ser descriminalizado sempre que ocorresse e deveria ocorrer até que fosse clinicamente exequível. Mais nada. Ou é ou não é. Mas parece que só querem até às dez semanas... o que, apesar de tudo e caso ganhe o SIM, vai continuar a deixar algumas mulheres em maus lençois. Pois, na realidade, pouco se tem falado do que acontecerá às mulheres que abortarem depois das 10 semanas e/ou fora de estabelecimentos devidamente autorizados. Cheira-me que estão lixadas e cheira-me que o pessoal se está a marimbar e isso é triste, para não dizer miserável. Portanto, voto SIM para que, pelo menos, as mulheres que abortam até às 10 semanas (as mais elucidadas, não nos iludamos) não tenham de ir a tribunal. Que, ao menos, essas escapem à humilhação adicional de um julgamento.
5. Estas ideias já vinham sendo alinhavadas por mim de há uns dias para cá; quando podia, e me apetecia, por aqui passava e acrescentava uma linha, emendava outra, refazia outra e assim me ía entretendo/entendendo. Mas ontem à noite surge, a título pessoal, a revelação e o ponto final nesta questão. Não se assustem, o SIM continua garantido! O que se passa é que ontem à noite (no "Prós e Contras", sim, não dá para passar ao lado, embora dê para desligar e ir dormir...) ouvi algo que me siderou, no bom sentido, no sentido de fulminar, de iluminar. No sentido da consciência, do serviço. Esse senhor que dá pelo nome de Miguel Oliveira da Silva (obstetra-ginecologista em Santa Maria) levanta-se e diz (no meio de outras coisas) o seguinte: «Porque o que eu desejo para o meu país não é forçosamente o que eu desejo para mim...». Esta afirmação, este pensamento, é notável. E só esta linha devia orientar a discussão. Distinguir os planos. Para A, B ou C haverá sempre a solução X, Y ou Z. Mas para o país só há uma solução possível. Ver esta lei anulada. Porra, eu sei que não é fácil pormos de lado as nossas convicções, olharmos a realidade dos factos, e tomarmos uma atitude consentânea, mas é precisamente isso que nos pedem neste momento. Sermos honestos. E a honestidade pede o SIM. E por isso vou votar SIM. Porque, embora não me reconheça nesta patetice, nesta fogueira de vaidades, neste chorrilho de intransigências, percebo que SIM, é preciso mudar a lei. O país precisa.