No outro dia perguntavam-me, ao fim ao cabo, o que é que eu tinha gostado mesmo no Brasil, da minha estada no Rio de Janeiro. A pergunta já vinha sendo recorrente. Eu próprio me perguntava o mesmo havia já uns tempos, e a resposta tardava a chegar. Fui-me contentando com as respostas simples como a comida, a música, a ginga, a disposição geográfica da cidade, o calor, os amigos que lá tenho (e fiz), enfim, a as respostas possíveis (e não menos verdadeiras). Mas não suficientes. Nenhuma delas abarcava a experiência, de facto. Até que me surgiu a palavra Humanidade. Quis esmiuçar. O dicionário dá-me a seguinte explicação:
Do Lat. humanitate; s. f.,
o conjunto dos homens; o género humano;
natureza humana; clemência;
benevolência; amor do próximo;
(no pl. ) estudos clássicos.Não chega, mas dá-me a Humanidade como o conjunto dos homens, como espelho da natureza humana, como reflexo da condição humana. Sim, de facto, no Rio de Janeiro vi a Humanidade nestes termos. Ali há homens e mulheres, entregues. Não há cosméticos (por muitas grades e
shoppings que se ergam; por monstruosa que seja a barreira entre a Zona Norte e a Zona Sul). A miséria que é a condição humana (que o é, também, não nos iludamos) está ali, exposta. Por paradoxal que possam ser estas minhas palavras, a verdade é que no Brasil (e aqui, provavelmente, podemos falar de todos os locais por esse mundo fora onde a desigualdade é dado adquirido) a Humanidade é. É aquilo que é. Não aquilo que gostaríamos que fosse. As OPAs, os confortos domésticos, a luta pela clareza política, a exigência de melhores salários, as férias em locais distantes, o euro, as pipocas, a imprensa cor-de-rosa, o último filme do Tarantino, adormecem-nos. Afastam os cidadãos do dito 1.º mundo da realidade, da Humanidade. A carne existe no mundo desigual. No mundo da segurança social já quase só existe o mental. Tal como fazemos tudo por tudo para afastar a morte das nossas vidas, vamos afastando a Humanidade das nossas vidas. Mais. Ao contrário do que se possa pensar (e a violência tem de ser entendida, não deve ser comercializada, pô), no Brasil a vida tem preço. O preço da Humanidade. Pode parecer bizarro a quem já teve uma pistola apontada à cabeça (e sei de muitos que já a tiveram) que essa experiência possa ser mais humana que poder passear descomprometidamente, à noite, no bairro de cada um. E por muito bizarra que seja a minha resposta (aceito que a seja), eu sinto que é. Branco/Preto, Céu/Terra, Homem/Mulher, Positivo/Negativo, Violência/Amor, isto é, Humanidade. O dito 1.º mundo anda coxo na sua eterna e exaustiva luta contra o lado negro das coisas. A morte não anda por aqui, não esquartejamos barbaramente ninguém. Não. Mas andamos cada vez mais esquizóides, mais deprimidos e deprimentes. Isso é Humanidade? Não. Isso é a desgraça de quem não aceita (ou a ele não é forçado) o lado negro da natureza humana.
E isto tudo eu senti, vivi, no Rio de Janeiro durante um mês e meio. A dualidade da vida, o negro e a luz da Humanidade, sentem-se mais por ali. É uma luta. É. É a Vida! Com maiúscula e ponto de exclamação.