Há uns dias atrás, ao comentar um post do Mário Moura sobre Chris Ware, referi a obra gráfica de Abel Manta e de como para mim tudo tinha começado nele. Uns dias depois (transmissão de pensamentos?) foi a vez de José Bártolo escrever um curto post sobre Abel Manta e a sua obra. Hoje foi a vez de Norberto Lobo (ver post anterior) trazer Abel Manta à baila. Chegou a minha vez...
Naquele tempo eu não era o Carlos, era o Carlitos. Tinha 8/9/10 anos. Era 1979/80/81. E deitado no chão da sala, barriga para baixo, pernas a abanar, tardes a fio desfiando as gravuras de um livro pesado demais para mim, assim entregue (o pai trabalha; a mãe não sei; a criada passa a ferro), com cheiro a cachimbo e a cera no ar, assim me apercebi da figura de Salazar (que por muito tempo confundi com o poeta Chiado; não tinha ele caído de uma cadeira e não estava o poeta prestes a fazê-lo lá para os lados do Camões?), da miséria nacional, da tristeza estranhamente patente nos olhos dos que há pouco faziam a festa. Aquele país onde descobri Manta era um país alcatifado (o pessoal da minha geração deve saber do que falo...). Os verdes e os castanhos de Manta eram os verdes e os castanhos de Portugal. A paleta de Manta saía directamente das cómodas, das malas, das estações dos correios e da massa dos óculos dos doutores de então. Um artista que tira assim cores a um país é um artista, ponto. A espessura dos traços, as áreas distintas de cor, os ângulos, o cinismo desenhado, a angústia gravada no papel, tudo aquilo me maravilhava. Cada página era uma descoberta. Naquelas tardes, deitado no chão, sei que cresci horizontalmente. Engraçada esta questão da posição... Aquilo esmagava. Só mesmo no chão dava para me atrever a avançar em direcção a ódios e costumes e torturas e silêncios ainda tão presentes...
E quando as cores se esfumavam e entravam em cena os traços, verdadeiras navalhadas, a preto? No fundo branco. Ou eram, antes, feridas brancas abertas em fundo negro? Fosse como fosse, essas eram as gravuras que mais me impressionavam. As que me metiam medo. As velhas de negro olhando a miséria da vida (que não passa), o "botas" semitapado pelos pesados reposteiros de São Bento olhando a vida da miséria (que passa) e, sobretudo, o Pessoa/Hamlet (ver imagem abaixo). Esse, sim, era um enigma. Não só no livro, como num espelho pintado (e quem é da minha geração também sabe a que me refiro...) pendurado numa parede do escritório. Aquele Pessoa era, já mo tinham dito, um senhor, um dos raros momentos altos deste país. Mas aos meus olhos pouco mais era do que um assassino frio e misterioso que vinha de longe com terríveis propósitos. A imagem aqui apresentada não está completa, mas na parte inferior, junto ao punho da camisa do poeta, encontra-se uma Lua (em quarto crescente). Muito tempo demorei até perceber que se tratava da Lua, lá longe, e não de uma lâmina fria e mortal (um canivete corso) que o Pessoa/Hamlet/Salazar dissimulava na escuridão da noite.
O tempo passou. Eu cresci. Portugal mudou de cores. Mas Manta continua um mestre, a par de Pessoa (com quem naturalmente fiz as pazes), um dos raros momentos altos deste país.
Há 10 anos
4 comentários:
Grande texto camarada Casca. Tens mesmo de começar a assentar caratcteres no papel à séria. Além de que a paixão pelo Abel Manta é mútua.
Brigadinhos... É bom saber que não são só letras, umas a seguir às outras...
Tou fartinho de lhe dizer isso (caracteres + papel à séria) mas ele não acredita ou não quer acreditar...
Agora estou a corar... lol
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