quarta-feira, abril 14, 2010

A vida como ela é...



Andei anos, e anos, e anos, a fugir desta fotografia. Escondi-a numa pasta, um dia, e pus-me a milhas. Assim segui, fugindo dela, por largos anos. Mas uma fotografia não nos persegue! Quem diz?

E o que me diz ela de tão terrível, que poderá ela esconder, melhor, revelar, para que eu tenha fugido dela assim? Na verdade, nem sei bem. Fugi-lhe durante tanto tempo que já nem sei qual era, foi, é, o ponto de partida. Qual o motivo? Ao longo dos anos, quando me lembrava dela e me interrogava fugidiamente das razões da fuga, do embaraço, a justificação era simples. Sempre achei que era o cabelo. Que era horrível. Envergonhava-me aquela figura. Nunca o tive tão grande, nunca o tive tão encaracolado. Nunca um cabelo foi tão pouco eu. Às vezes, até o kispo foleiro servia de desculpa. Mas é mais do que óbvio que não foi por questões estéticas, capilares, que a {me} aprisionei numa pasta numa gaveta. Umas quantas sessões de análise e estou certo de que ela me diria muita, muita, coisa. Mas como não sou carioca, nem me parece que para mim seja por aí, restam-me os exercícios da suposição, do cola-com-cuspo uma memória aqui, outra ali.

Não a relaciono com nada em particular, mas toda ela em geral me perturba. Toda ela é nebulosa. Nem uma data concreta lhe consigo fixar. Digamos, a bem da argumentação, que foi tirada em 1981. Tinha eu 10 anos de idade. Parece-me razoável. Por essa altura ainda passeava com regularidade, à beira-mar, ao longo da baía de Sesimbra e este cabelo associo-o, sem margem para dúvidas, àquele mar, àquela areia, àquele calor. Mas associo-o, agora que penso nisso, mais ao seu ocaso do que à sua plenitude. Este cabelo, este eu aqui fixado, representa para mim, muito provavelmente, o estertor, o fim, o encerrar de uma época de ouro {a primeira} da minha vida. Mais do que a vivência plena desse mesmo período; então o cabelo era mais cabelinho, louro, curto, ordenado. O apartamento em Sesimbra; a liberdade de dormir num saco-cama, no chão do apartamento, pejado de primos e primas {e as amigas das primas}; os banhos de mar até ao Sol se pôr; a ida matinal ao pão e à litrada de Seven-Up; o passeio nocturno até ao melhor gelado de sempre, nas traseiras do mercado; tudo isso já não se encaixa na figura deste miúdo cabeludo. Tudo isso já passou. Pareceria suficiente, para querer esquecer este puto, só que não é. Porque Sesimbra é apenas um aspecto dessa primeira década de existência. Porque se havia Sesimbra, muito mais havia Lisboa, isto é, a vida do dia-a-dia, a vida em família, a vida da escola e do lar, o fim-de-semana, o quarto com os brinquedos, a vida com os pais. E também isso deixara de existir. Nesses moldes, isto é. Esta fotografia, este meu longínquo eu, olha-me nos olhos e conta-me como foi "perder" o casamento dos meus pais. Esta fotografia ocorre após a separação deles. Esta fotografia "é" o fim do casamento dos meus pais. Uma casa passa a duas. Um pai passa a outro. Uma mãe passa a outra. Claro, um filho passa a outro. Este. Cabeludo. Desesperado? Nem tanto.

É mais uma vida a ceder o lugar a outra. Uma que conhecemos bem, e onde somos bem tratados, que dá azo a uma outra que, na verdade, pouco mais é do que uma incógnita. E cheira-me que este desalinho, este deixa andar, este deixa crescer, who cares?, é consequência disso tudo. Este olhar, esta, não digo triste, mas desanimada figura, reflectem bem esse ponto de charneira. Esse momento da vida em que a vida de alguém muda para sempre. Mas isso é bom, não é? – Digo eu agora, que já nem preciso de análise, vejam lá bem... Não seria, então, de exaltar esta fotografia? – Não; foi mais fácil cortar o cabelo e seguir em frente. Escondê-la para quê? Será que ainda hoje sinto falta desse tempo, que ainda hoje me revolto, ou reclamo, juntamente com esse miúdo, com essa circunstância da vida? Não, hoje já não. Porque hoje fiz as pazes com esta fotografia. Hoje fiz as pazes com este meu eu.

5 comentários:

joana lee disse...

eu cá gosto da fotografia, com ou sem texto ilustrativo.

anauel disse...

Sim, eu também já começo a gostar um pouco mais dela...

Mas é realmente impressionante como uma fotografia pode carregar texto, histórias, sentimentos e whatnot, sobretudo aos olhos dos nela representados. Powerful thing!

aquelabruxa disse...

olha, estás bem giro.
havias de ver as minhas fotografais de quando tinha 11... deitei-as fora! não havia qualquer possibilidade de alguma vez fazer pazes com elas... só pare teres ideia, t-shirtzinha a dizer mónica com um dos 7 anões, coitadinha de mim. e o cabelo, ai o cabelo...

D. disse...

Realmente as fotos dizem muito sobre nosso passado, lembrar que meu cabelo era curtinho e todo mundo me chamava de "piá", foi uma das grandes tristezas da minha vida, fora meus dentes tortos que as pessoas debocham de mim =(, minhas fotos são horrivéis, haha tive que inventar que no meu tempo não existia máquina fotográfica!Mas hoje vejo que é não é só a minha pessoa que passou por isso, teve momentos bons e ruins. Gostei muito do seu post, me fez refletir sobre mim!

anauel disse...

Boa!