O rapaz devia ter uns 5, 6, 7 anos de idade. Era loiro loiro, sardas dispostas em redor do nariz, camisas aos quadrados e calças de fazenda {quando não de bombazina} e fazia as alegrias dos seus pais. Sabia-o, sentia-o. Na realidade, bem vistas as coisas, o rapaz nem era bem rapaz. Naquele tempo, naquele país, rapazes loiros com calças de fazenda eram meninos. E esse menino era esperto. Atento. E miserável. Encontrava-se na pior das situações, encurralado. Já tentara utilizar a manha, a sonsice, a manipulação, que tinha ao seu alcance, em doses adequadas à sua idade, para contrariar as intenções dos seus pais. Já ensaiara a fuga, solução de quando tudo falha, fuga desenfreada pelos corredores do hospital que tão bem conhecia. Era um hospital verde, e castanho, e tons cinza aqui e ali, nas fardas, nas maçanetas, nos aparelhos. Nas patentes, estava o dourado. Nas boinas e nos ombros. Mas esse dourado, esse brilho, não o fascinavam, não o ofuscavam, neste preciso momento. Agora era tempo de salvar a pele. Fuga. Falhada. Preso. Agarrado. E com um toque de força a mais! Aquele toque a mais que machuca além da pele. O menino estava desamparado. Além de que já tinha levado com aquele olhar felino, assustador, que tão bem conhecia na sua mãe. E levara também com aquele outro, do pai, tão assustado quanto ele, mas disfarçado de autoridade e resolução, mãos-dadas com a chatice de tudo aquilo. Era uma chatice, não houvessem dúvidas. Mas para o menino era também, e essencialmente, uma traição. Todos os meninos {e rapazes, que aqui não há distinções!} experimentam, têm de, a sensação de traição. A deste menino foi naquele dia. Era a traição que emanava, vejam bem!, de presenças tão fortes na sua vida, como não havia outras, as mesmas que infernizavam a sua vida naquele dado momento. Era a traição de o fazerem passar por estúpido ao lhe acenarem com o milagre dos gelados sem limites, sem restrições, sem escolha de sabores, eram todos possíveis. Era só pedir. Que se lixassem os gelados! Ele queria era manter as amígdalas! Ele queria era evitar toda aquele sofrimento e humilhação. É verdade que já lhe tinham explicado que era assim mesmo, necessário, e que nem havia de custar horrores. E havia o tal prémio, no fim. Mas nem o conforto dos gelados o demovia daquele estado de terror. E agora, apanhado que estava, imóvel na cadeira, só lhe restava a traição daqueles ali em volta, aqueles estranhos de bata, frenéticos, embasbacados uns, resolutos outros, todos aplicados naquele ataque coordenado. Em relação a estes nem se tratava de traição, que não os conhecia de lado algum, nem eles a ele. Não havia laços, a quebrar. Estes, o que praticavam era mesmo tortura. E esbirros que eram, machadada letal deram. Na forma de máscara etílica, sufoco, grito, morte. Pontos cyan, magenta, yellow, black. Tudo decomposto. E de seguida o vazio. A morte. O silêncio.
{...}
A mão da mãe na sua. Sussurros. A respiração da mãe, ali ao alcance de um olhar. Mas os olhos insistiam em permancer pesados. O corpo, mais que a alma, dorido. E lentamente o menino despertou. Com a luz veio um pouco de rapaz até àquele menino. Assim meninos se tornam rapazes, assim rapazes se tornam homens. Assim homens se tornam meninos. Mas o corpo dorido persistia. Agora que pensa nisso, lembra-se de ter comido, realmente, um ou outro gelado. Mas também se recorda de que não souberam a nada {a sua mãe, mais tarde, contou-lhe que, recordando esse episódio, ele lhe confessou que só anuiu em comer e saborear e elogiar os famigerados gelados por consideração pela sua mãe e pelo seu sentido sentido de culpa}. E se não lhe sabiam a nada não era devido a um qualquer defeito físico, não, era mesmo porque o mal estava feito. E mais do que isso, era o mal estar feito e nada ter mudado. O mundo não acabara. Antes pelo contrário.
Quando contaram ao homem que fora esse rapaz que fora esse menino que toda esta aventura, toda esta dor e toda esta culpa estavam aninhadas ao longo da sua espinha dorsal, das suas vértebras e dos seus múltiplos nervos, proporcionando-lhe dores e incómodos, todos eles assentes em 30 anos de culpabilização dos progenitores, ele nem queria acreditar. Mas era, de facto, bem simples. Não lhe restaram dúvidas quando, após mãos mágicas operarem as suas artes e deixando essa energia entrar-lhe corpo/mente/espírito adentro, tudo se dissipou, os nós se desfizeram, e lavar a louça sem dores adicionais voltou a ser possível. A questão, para ele, agora, é determinar o que significarão, o que ocultarão, aqueles pequenos incómodos que ainda por ali se manifestam...
Por aqui é a osteopatia que fascina e as capacidades de quem é realmente competente. Aqui é mais a vertente sacrocraniana e a certeza de que tudo está no "realmente". Bliss!, essa é que é essa!
Há 10 anos
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