sábado, junho 28, 2008

Febre Vermelha

Rosas de vinho! abri o cálice avinhado,
Para que em vosso seio o lábio meu se atole:
Beber até cair, bêbado para o lado,
Quero beber, beber até ao último gole!

Rosas de sangue! abri o vosso peito, abri-o!
Montanhas alagai! deixai-as transbordar!
Às ondas como o Oceano, ou antes como um rio
Levando na corrente Ofélias de luar...

Camélias! entreabri os lábios de Eleanora,
Desabrochai, à lua, a ânsia do vosso cálix!
Dá-me o teu génio, dá! ó tulipa de aurora!
E dá-me o teu veneno, ó rubra digitális!

Papoilas! descerrai essas bocas vermelhas,
Apagai-me esta sede estonteadora e cruel:
Ó favos rubros! os meus lábios são abelhas,
E eu ando a construir meu cortiço de mel.

Rainúnculos! corai minhas faces de terra!
Que seja sangue o leite e rubins as opalas!
Tal se vêem pelo campo, em seguida a uma guerra,
Tintos da mesma cor os corações e as balas!

Chagas de Cristo! abri as pétalas chegadas,
Numa raiva de cor, numa erupção de luz!
Escancarai a boca, às vermelhas risadas,
Cancros de Lázaro! Feridas de Jesus...

Flores em brasa! Órgãos de cor! Tirava
Óperas de oiro, pudesse eu, das vossas teclas.
Vulcões de Maio! ungi minha pele de lava!
Dai-me energia, audácia, ó pequeninos Heclas!

Dai-me do vosso sangue, ó flores! entornai-o
Nas veias do meu corpo, estragado e sem cor
Que vida negra! Foi escrito, à luz de raio,
O triste fado que me deu Nosso Senhor.

Cismo já farto de velar minha alma doente,
Não dura um mês sequer, minhas amigas, vede!
Mas, mal vos vejo, então, pulo alegre e contente
A uivar, como os leões quando os ataca a sede!

Corto o estrelado Céu, voo através do Espaço,
Cruzo o Infinito e vou rolar aos pés de Deus,
Como se acaso fosse, em catapultas de aço,
Por um Titã de bronze atirado a esses Céus!

Amo o Vermelho. Amo-te, ó hóstia do sol-posto!
Fascina-me o escarlate, os meus lábios estanca:
E apesar disso, ó cruel histeria do Gosto,
Miss Charlotte, a flor que eu amo é branca...


António Nobre, , "Febre Vermelha", 1886.

Sem comentários: