segunda-feira, março 31, 2008

Iracema, uma transa amazónica

Iracema, uma transa amazónica (1976), de Jorge Bodanzki e Orlando Senna. Este filme é muito bom! Grande país, grande filme. Grande país, grande miséria. Grande país, grande estrada. Grande país, grande transa. A transamazónica (a estrada que liga a cidade à selva; o progresso; um novo desconhecido) em comparação, em resultado, em trocadilho irónico, com a transa amazónica, com aquela sexualidade desbragada, revolta, de pelagem exótica tão característica dos trópicos e que nos intriga tanto, e há tanto tempo, a nós, europeus... A condição do índio, da mulher e da criança quando lançados às feras, aos "brutos", à "civilização", sem regras, sem grande moral, sem sentido aparente. A desmatação, a poluição, a prostituição, a estrada, enfim, o progresso. Desordem e Progresso. Um daqueles filmes meio alucinados, que mistura muito bem o registo ficcional, cinematográfico, com o registo mais "real", documental. E que nos garante, dias depois, ainda uma sensação amarga, um incómodo perante a vida e a condição humana. O que é bom, certo?

{Tião (personagem e tanto!) conversando com um madeireiro junto ao Amazonas, enquanto lhe carregam o camião de pranchas de madeira}

T — Como tá a coisa aí, pelo rio?
M — Tá maravilhoso, tá ótimo...
T — A natureza...
M — É, a natureza. Mãe que cria todo o mundo...
T — Natureza é mãe coisa nenhuma, rapaz. Fica essa gente aí esperando uma correnteza...
M — ...
T — Natureza é mãe coisa nenhuma. A natureza é o meu caminhão, rapaz. A natureza é a estrada.
M — A natureza é essa baía, tudo maravilhoso...
T — Natureza que nada... Não cria nada. Não vê que tá tudo mirrado...
M — Que nada, todo o mundo vem para cá e cria tudo. Isto é uma terra rica...
T — Que nada, isso é uma terra pobre... Vai ficar rica...
M — ...
T — Mãe só tem uma... Mãe é a mãe da gente, não tem nada desse negócio da natureza ser mãe, não.
M — A mãe não é só aquela de que a gente nasce. Nós temos a outra. A maior mãe nossa é a nação...
T — A nação brasileira...
M — Que nos cria...
T — É, essa nação que está crescendo, que está progredindo...
M — Isso. Essa é que é a mãe, a verdadeira mãe.
T — Onde tem madeira, tem dinheiro. Meu negócio é esse mesmo. Eu estou atrás é do dinheiro, da grana. Só não se dá bem nesse país quem não sabe se virar. Quem não tem cabeça. Podicrê. Eu sou mais eu. Eu sou o Tião. Tião "Brasil Grande". Podicrê. Eheheheh.... Vamo lá pessoal, vamo lá, que ainda essa noite eu quero cair na putaria... ehehehe...»







{Esta cena final, uma orgia demente de beira de estrada, o encontro de umas putas com outras, o álcool e a puta da vida num só e desfigurando as almas acabadas de uns e de outros é pura e simplesmente genial.}

4 comentários:

Anónimo disse...

E eu que sempre pensei que os piratas gastavam todo o ouro conquistado em muito pouco tempo. Vejo agora que não. Piratas também usam o seu ouro devagarinho. Para não acabar tudo logo, logo, logo...

anauel disse...

Pôxa companheiro Ribas! O tempão que eu demorei até perceber esse seu comentário... eh eh eh... Ai as saudades da Esquina de Santa...

Mas é isso mesmo. Dosear bem doseadinho. Mas já só me resta o São Paulo SA e o Terra em Transe... Vi recentemente o Quase Dois Irmãos mas ficou aquém das expectativas...

99 disse...

Vi esse filme. excelente !!

Sugiro que vcs vejam depois com os comentários do diretor (no DVD que aluguei tinha), é uma delícia, pois as cenas foram meio improvisadas, conversando com pessoas reais.
Por exemplo, o diálogo aí em cima foi real sendo que o Pereio provocava a reação verdadeira do madereiro.

anauel disse...

Só melhora a coisa, portanto...
Sim, imagino que nesse valha bem a pena ouvir os comentários... O filme tem certamente muita doideira por trás. E pela frente... ;D

Fiquei com vontade de rever!