domingo, janeiro 27, 2008

Picadeiro

Hoje, depois de uma belíssima aula em cima do Aladino (em mais um baptismo bem sucedido), ao preparar-me para me ir embora, desloquei-me ao interior do picadeiro para depositar o meu stick e, ali, sozinho, perante um picadeiro vazio, de areia revolta (ainda (ou já) com uma ou duas aulas em cima), mas vazio, cheiros e emoções passadas, bem distantes, memórias vivas de um tempo em que menino pisei picadeiros entretanto esquecidos, vieram, em catadupa, à minha presença. Ali, hoje de manhã, um domingo. Um picadeiro vazio ostenta uma poderosa camada de história, luz e som que poucos locais (quando vazios) ostentam. Na realidade, um picadeiro vazio é algo que não existe. Um picadeiro é um ser vivo(*) que se exercita quando cheio e que retoma energias quando vazio, mas sempre, sempre respirando e marcando o tempo. Quando vazio, retira-se, introspecto, e mantém-se em vigília. Quando penetrei nele hoje de manhã, ele sobresaltou-se ligeiramente e iniciou um processo de sussurros. Falou comigo e eu escutei-o. É difícil não ouvir o silêncio de um picadeiro, um silêncio composto de luz (se o corpo humano é 70% de água, um picadeiro é 70% de luz), de insterstícios (da madeira? de outra matéria?), de movimento quasiperpétuo, circular, em serpentina, a passo, a riso (ou choro). E se um picadeiro em descanso tiver (como hoje teve), aqui e ali, como que a marcar um tempo ou um ritmo, como se de um metrónomo dos seus sinais vitais se tratasse, o chilrear feliz e cristalino de um pardal, bem, aí tanto melhor. Bênçãos!


(*) A propósito desta noção de um espaço ser como um ser vivo e de necessitar de momentos de acção e de descanso, vêm-me à memória as excelentes palavras do arquitecto paisagista holandês Dirk Sijmons sobre a Arena (estádio actual do Ajax), e que não resisto a transcrever (do livro Brilliant Orange, de David Winner). «"The old Ajax stadium was too small and it was not a beauty by any standard [...] But it was nice and cozy. And it was built for football rather than for making money. [...] ... the Arena is not a home. They play there on a Sunday. But then there is a Rolling Stones concert. Then a big congress. Then the unveiling of the new Mitsubishi space-car. Then, after seven days, Ajax are allowed to go and play football again. [...] This Dutch multi-functional obsession of making money with the same building in many ways [...] that kind of thing... It is a very brilliant idea, of course, but it squeezes the life out of what a football stadium is. A stadium has to rest between matches too. It should wait empty for a week before the game, before the next flow of people arrives. A stadium somehow needs to meditate."» Nem mais.

7 comentários:

Anónimo disse...

Bela descrição... mas talvez sejam só as energias deixadas por pobres animais sacrificados ao caprichos dos humanos!

anauel disse...

Faz-me lembrar as energias deixadas pelos pobres assaliariados sacrificados aos caprichos das corporações... É a vida, amigo Serafim!

aquelabruxa disse...

e a bianca (e centenas de putos no mesmo dia) foi lá também levar uma vacina, lol, no relvado do estádio do ajax!

anauel disse...

Lindo!
Como dizem os brasileiros: não tem condição!
Um estádio é um estádio, não um centro de vacinas... estes holandeses são doidos...

anauel disse...

Mas, porra, a imagem de centenas de crianças alinhadas no relvado do Arena de Amsterdam, à espera da vacina, é genial!

Anónimo disse...

Amigo Anauel, só me referia á parte esotérica da energia, nada de reivindicações sociais. Mas já que falas nisso, o que me parece é que não são os "assalariados que são sacrificados ao serviço das corporações", são os politicos que são conduzidos por elas. Este também serve para o post (E não se pode "fechá-los" a todos?) Abraços.

aquelabruxa disse...

sim, eu também gostei... eu gosto das misturadas que por aqui há, cafés em igrejas, pessoal a viver em escolas ou armazéns navais, até mesmo em hospitais e supermercados (ocupados, claro), árvores dentro de livrarias. é lindo.