quarta-feira, dezembro 12, 2007

Kenneth Tynan

A magnífica (nunca é demais frisá-lo) revista Piauí levou-me até essa "louca" personagem que é (foi) Kenneth Tynan. O fascinante da vida é mesmo isto, a ideia de que há sempre a possibilidade da descoberta de personagens (ou factos e acontecimentos) destas e de estas se atravessarem no nosso caminho. Pode demorar mais, pode demorar menos, pode ser por acaso (pffff...), pode ser sugerida por alguém, mas é sempre fascinante dar de caras com personagens doidas como estas. Li hoje a tradução (da Piauí) de algumas das últimas entradas do seu Diário (com edição de John Lahr) e deixo aqui algumas pérolas.

«1975
7 de Junho
[a propósito de Profissão Repórter de Antonioni, que Tynan desprezou] A tarefa do crítico — pelo menos 90% dela — é abrir caminho para o que é bom, demolindo o que é ruim. No momento, Antonioni está bloqueando o trânsito na rua.

19 de Outubro
A influência mais poderosa sobre as artes no Ocidente é o cinema. Romances, peças e filmes estão cheios de referências, citações e paródias de velhos filmes. Dominam o subconsciente cultural porque os absorvemos nos nossos de formação (muito menos do que absorvemos livros, por exemplo) e tornamos a vê-los na televisão depois que crescemos. As primeiras duas gerações alimentadas basicamente por filmes chegaram agora a uma idade em que assumiram o comando dos meios de comunicação: é assustador ver como foi profunda — tanto no comportamento quanto no trabalho — a influência do cinema sobre elas. Ninguém levou em consideração o impacto imenso, que seria produzido pelo fato de os filmes serem permanentes e facilmente disponíveis da infância em diante. À medida que a quantidade de filmes aumenta, a sua influência aumentará, até que cheguemos a uma civilização totalmente moldada segundo valores e padrões de comportamento inspirados no cinema.

3 de Novembro
Um fin de semana dourado de outono com Kathleen e as crianças, num hotel da aldeia de Upper Slaughter, em Costwold. O vocabulário de Matthew vem crescendo depressa, e agora ele pode ser considerado uma pessoa com quem é possível conversar. Roxana já passou por essa prova há muito tempo. Os dois são simplesmente de tirar o fôlego pela sua beleza. Vendo Matthew comer patê (pelo qual, aos 4 anos, desenvolveu o gosto de um connaisseur) e ouvindo Roxana me pedir que lhe explique o conceito de democracia, surpreendi o olhar de K. do outro lado da mesa de almoço (rosbife e Borgonha) e senti, quase pela primeira vez, que éramos uma família — isto é, que cada qual tinha com os outros três laços robustos e duráveis de afeto, que ele/ela nunca sentiria por outra pessoa.

15 de Dezembro
Observação, vendo o péssimo trabalho de uma actriz num filme: "Ela representa tão mal que precisaram dobrar até os seus passos".

1976
4 de Abril
O rádio do carro toca. Percebo que, durante a II Guerra Mundial, o foco da nostalgia de todo o mundo era a América do Sul. Uma Noite no Rio, todo o culto de Carmen Miranda — eram um reflexo do quanto desejávamos uma área razoável do planeta onde ninguém estivesse sendo bombardeado ou invadido e onde nada fosse mais importante do que rimar "casal apaixonado" com "um céu estrelado".

20 de Maio
Fui com K. (no vestido de Garbo de Como Me Queres, que mandei copiar para ela) a um baile inspirado nos anos 20. Eu vestia um peignor de lamê azul, com lantejoulas, calções, suspensórios, meias pretas de mulher e uma peruca arrumada no estilo de Louise Brooks. (...) Raspei as pernas para a ocasião. Embora eu jamais fosse querer ser mulher, adoro a ideia de transar com uma delas vestido de mulher, e prefiro muito mais a sensação das minhas pernas sem pêlos. O que não me transforma num travesti, mas significa que gosto de explorar possibilidades sexuais que estão fora do alcance de machões de calças jeans e camiseta. (Considero uma falha na minha formação nunca ter ficado excitado com visão ou com a ideia de um homem.)

7 de Novembro
Na Califórnia, vivo num óasis cercado de carros usados e vou a festas no alto das colinas, onde senhoras de meia-idade conversam sobre masturbação. E penso: o que este homem estará fazendo nesse cenário, e quem vai pagar o aluguel?

1978
Maio-Setembro
(...) Em maio, passei quatro dias felizes em Rochester, no estado de Nova York, com Louise Brooks, que era uma alegria — inválida, mas parecendo um passarinho, hilariantemente indiscreta (afirma que, quando se masturba, mesmo aos 71 anos, "eu me sento naquele sofá e a minha boceta jorra líquido até aquele toca-discos, do outro lado do quarto. São mais de 5 metros!", junto com histórias detalhadas de seus casos com Chaplin, Hearst, Pabst!, etc.

1980
29 de Janeiro
Das Confissões, de Somerset Maugham (a propósito de Rousseau): "Existe um tipo de homem que não dá atenção às boas açoes que pratica, mas é atormentado pelas más. Esse é o tipo que, na maioria dos casos, escreve sobre si mesmo. Ele deixa de fora suas qualidades positivas e, assim, nos parece apenas fraco, vicioso e desprovido de princípios". Cairei nessa armadilha?»


A avaliar pela amostra o livro deve ser excelente. Essencialmente crítico teatral, mas crítico sempre, homem das artes e do glamour e das festas, Tynan foi o primeiro indivíduo a proferir a palavra fuck na televisão britânica, gostava de dar palmadas nos rabiosques das amigas (e estamos a falar de actividade sexual, não de reprimendas...), partilhava festas loucas com Vidal, Brando, Burton e Taylor, um Beatle aqui, um Stone ali, e tantos outros, e admitiu que a sua maior falha era nunca ter conseguido realizar um filme pornográfico... Um homem que misturou (nem sempre na perfeição, queixam-se posteriormente os seus filhos) a vida conjugal e uma vida amorosa sui generis, a "sanidade" e a "insanidade", o "belo" e o "hediondo". Um homem e uma vida a descobrir.

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